segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Grande Edgar - Luis Fernando Verissimo

Sempre tive a vontade de colocar esse texto aqui! Um texto bem humorado, com situações que deve ter acontecido com muita gente... Vamos deixar blá... Boa leitura.
Já deve ter acontecido com você.
- Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?
Neste ponto, você uma escolha. Há três caminhos a seguir.
Um, o curto, grosso e sincero.
- Não.
Você não está se lembrando dele e não por que esconder isso. O "Não" seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.
Outro caminho, menos honesto mais igualmente razoável, é a dissimulação.
- Não me diga. Você é o.. o...
"Não me diga", no caso, quer dizer "Me diga, me diga". Você conta com a piedade dele e sabe cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
- Desculpe, deve ser a velhice, mas...
Este também é uma apelo à piedade. Significa " Não torture um probre desmemoriado, diga logo quem você é!" É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.
E há o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
- Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
- Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhgorda, ele o desafiará.
- Então me digam quem eu sou.
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
- Pois é.
Ou
- Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus?
Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como "Jabs" verbais.
-Como cê tem passado?
- Bem, bem.
- Parece mentira.
- Poxa.
(Um colega de escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele está falando:
- Pensei que você não fosse me reconhecer...
- O que é isso?!
- Não, por que a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
- E eu ia me esquecer de você? Logo você?
- As pessoas mudam sei lá.
- Que ideia.
(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O...o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo, amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas.
"Que bom encontra você!" e Paf, chuta uma perna. "Que saudade!" e Paf, chuta a outra. Quem é esse cara?).
- É incrivel como a gente perde contato.
- É mesmo.
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
- Cê tem visto alguém da velha turma?
- Só o Pontes.
- Velho Pontes!
(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
- Lembra do Croarê?
- Claro!
- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
- Velho Croarê!
(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum croarê e nunca fez tiro ao alvo. É Inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
- Rezende...
- Quem?
- Não tinha um Rezende na turma?
- Não me lembro.
- Devo esta confundindo.
Silêncio. Você sente que está preste a ser desmascarado.
- Sabe que a Ritinha casou?
- Não!
- Casou.
- Com quem?
- Acho que você não conheceu. O Bituca.
Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você esta tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?
- Claro que conheci, velho Bituca...
- Pois casaram.
É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.
- E não me avisaram nada?!
-Bem...
- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!
- É que a gente perdeu contato...
- Mas meu nome está lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
- É...
- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de mim!
- Desculpe, Edgar, é que...
- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam.
(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de "Já?!")
- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você , viu?
- Certo, Edgar. E desculpe, hen?
- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido!
- Isso.
- Reunir a velha turma.
- Certo.
- E olha, quando falar com a Ritinha e o Matuca...
- Bituca.
- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hen?
- Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dize "Grande Edgar". Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar "Você está me reconhecendo?" Não dirá nem não. Sairá correndo.

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