quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Obra e a Arte

A Obra e a Arte
Yuri Montezuma

Uma exposição de pintores famosos. Da Vinci, Monet, Picasso, entre outros. Ao centro encontra-se um artista contemporâneo segurando um rolo de papel higiênico escrito arte. Os observadores entram na sala e elogiam bastante às obras já conhecidas, mas ignoram o artista e seu rolo de papel. Um grupo de amigas entra na sala e elogiam bastante as obras mais famosas e entram em discussão sobre o conceito de arte do artista.
Os personagens não são nomeados para liberdade de montagem.
- Picasso é fantástico. Sua ligação do contexto histórico do mundo nos deixa maravilhada. Um verdadeiro artista.
- Eu já discordo de você. A obra mais misteriosa é a de Da Vinci... Ele conseguiu nos deixar curiosos e sair em busca de resposta para outras existências, outros mundos.
- Já eu sou  fã de Monet...
- (As outras duas) Quem era Monet?
- Monet? Ora... Monet era Monet... O cara que pintou esse quadro que vocês estão vendo. Pergunta boba... Conhecem Picasso e Da Vinci, mas não conhecem Monet. Absurdo.
- E você conhece esse tal de Monet?
- Claro que sim... Mas vamos deixar de bobagem (olhando para a quarta amiga) e você gosta de quem?
- Hélio Melo.
- (As três anteriores com desdém) E desde quando artista do acre merece ser valorizado igual a Monet, Picasso ou Da Vinci?
- (A quarta amiga) Não é uma questão de querer igualar ou querer ser melhor, superior, mas é uma questão de saber que aqui também existem bons artistas. Pintando, escrevendo ou atuando. Aqui também tem arte.
- Sei arte...
- Vamos acabar com essa discussão de gostos artísticos por que tenho coisas bem mais importantes para mostrar pra vocês.
- O que foi?
- Olhem aquele homem parado segurando aquele rolo de papel higiênico escrito arte.
- Isso é um completo absurdo...
- Um disparate...
- Uma ofensa...
- Uma obra de arte...
- (As três) Isso! Uma obra de arte.
- (A primeira) Uma o quê?
- Obra de arte!
- (As três) Você está louca!
- Primeiro gosta de Hélio Melo e diz que aqui tem bons artistas.
- Que devemos valorizar esses ditos bons artistas.
- Que aqui tem arte.
- (As três) Louca...
- E no banheiro feminino está faltando papel e esse aqui com um rolo inteiro.
- Ele deve usar muito...
- E aqui está até com um cheiro esquisito... Parece ovo estragado.
- Não peço que concordem comigo... Cada um tem seu gosto e conhecimento em relação à arte. O que vemos aqui é arte contemporânea.
- Arte contemporânea!
- Gosto!
- Conhecimento!
- Amigas pensei que vínhamos aqui para apreciar a arte em suas diversas faces e não encerrar nossa amizade.
- Ninguém veio encerrar nada!
- Só que achamos que arte contemporânea é o que o rolo de papel mostra.
- Isso mesmo... Um bosta!
- Eu não disse isso... Quis dizer que é sem sentido.
- Então para vocês arte deve fazer sentido?
(As três) Sim
Adentra o salão uma senhora de cabelos solto, óculos escuros, sapato alto, magra. Observa a discussão das quatro por um instante e decidi intervir.
- Desculpem senhoras, mas estava observando vocês discutirem sobre o que é ou não arte. Gostaria de participar dessa coversa se me permitirem.
- Claro que sim... Uma quinta Opinião sempre é bem vinda.
- Por que dessa briga toda?
- Olhe ao redor... Aqui tem os mais famosos artistas do mundo. Pela primeira vez temos aqui no Acre uma exposição desse porte. Nossa amiga aqui está dizendo que esse rapaz, musculoso, alto, jovem e com esse volume aqui! É arte.
- Que volume?
- O papel... Pensou que fosse o quê?
- Nada... Só que você falou volume com uma cara de...
- Dor na barriga... Isso que sinto toda vez que tenho que olhar pra isso.
- Senhoras não vão sair do foco.
- Tem razão. Vamos nos focar. Disse as minhas amigas que a arte contemporânea existe sim e que esse rapaz segurando o papel higiênico com o escrito ARTE, demonstra que o artista transformou esse papel que serve para outras funções além da qual foi desenvolvido.
- Limpar a bunda isso sim! A única obra que ele faz.
- Seguindo o conceito de que o artista contemporâneo transforma a arte, posso afirmar que isso aqui é uma obra de arte.
- Entendeu agora...
- Eu já havia entendido!
- Espera aí... Você está dizendo que isso aqui é arte?
- Sim!
- Ser ou não ser? Essa é a questão no meio desse turbilhão e tanta confusão!
- Está vendo?
- O quê?
- Você acaba de transformar a arte!
- Mas usei a frase famosa daquele autor famoso inglês...
- Molière...
- Cruzes... Molière era da França.
- Isso não tem importância no momento. O importante é que a obra foi transformada em outra obra e agora já não é o que era.
- O que diabo essa mulher está dizendo?
- Eu não sei, mas concordo e agora digo que o rapaz com o papel é arte!
- Não foi você que disse que à arte contemporânea era uma bosta?
- Claro que foi, mas depois de esclarecido os fatores, os teoremas, as conclusões e o aprendizado... Vejo que isso aqui também é arte.
- Fico feliz por entenderem... Agora acho que nós sabemos que existem vários conceitos de arte... Certo?
- Certo nada... Isso não passa de um rapaz segurando um papel e não é arte.
- Também acho... À arte tem que mexer com a gente... Algo que possamos fazer reflexão... Levar algo de bom para casa. Agora isso aqui! A única coisa que levo pra casa é uma verdadeira vontade de correr para o banheiro.
- Mas não deixa de ser uma reflexão.
- Bem, não serei eu que vou colocar na cabeça de vocês o que  é ou não é arte. Vou indo para segunda parte da exposição, onde mostra homens e mulheres completamente nus. Sem nada para cobrir seus sexos. Passar bem. (sai)
- Isso é uma vergonha...
- A família acriana deve ser poupada de tamanha insensatez...
- Um ataque contra as pessoas de bem.
- Eu vou observar a segunda parte da exposição... Fui (Sai)
- Sabem meninas... Também vou. (Sai correndo atrás das outras duas)
- E você vai olhar aqueles corpos nus?
- Acho que vou ficar por aqui. Sou uma pessoa de família...
- Penso que devemos ir assistir também para poder criticar e tecer nossa opinião.
- Também acho!
- Vamos?
- Vamos!
- Espera aí... Essa frase do vamos,vamos é de Esperando Godot de Becket?
- Sim!
- Então nós transformamos a obra!
- E acabamos com a arte.
- Mas...
- Cala a boca (saem)
Entra um funcionário do prédio onde acontece a exposição e caminha em direção ao rapaz com o papel higiênico.
- Armando o que você está fazendo aqui?
- (Meio desajeitado) É que eu vinha passando pelo salão de exposição e senti uma vontade louca de soltar um pum.
- Não tenho nada com seus problemas intestinais! Faz uma hora que te mandei buscar papel higiênico para por no banheiro feminino e até agora nada.
- Pois então... Não aguentei e acabei soltando o pum preso.
- E o que tem isso?
- Fedeu...
- Foi por isso que demorou?
- Não... Fiquei com vergonha daquelas senhoras. Puxei a caneta do bolso e escrevi aqui a palavra ARTE. Parei igual uma estatua... Como se eu fizesse parte da exposição.
- Meu deus! Você estragou tudo... A exposição de arte contemporânea é no outro salão... Aqui é apenas exposição de obras clássicas.
- Tentei escapar, mas elas cismaram comigo... Discutiram se o papel era ou não era arte.
- Espero você no RH... Vai levar uma advertência.
- Por quê?
- Por pratica ilegal de arte!
- E tem isso?
- É uma norma que criamos hoje, agora, nesse exato momento. (sai)
- Basta virar artista para começar a ser recriminado. (Tira um pedaço do papel higiênico assua o nariz, luz vai diminuindo até o B.O)




FIM

Ser, Pra quê, Por quê?

Ser, Pra quê, Por quê?
Yuri Montezuma
Um consultório psiquiátrico, um divã, na cabeceira do divã uma cadeira, em um canto da sala existe uma estante com vários livros, na parede oposta existem pequenos quadros retratando a natureza, o ambiente é meio cinza, iluminado praticamente com um pequeno abajur. O piso é de madeira rústica e bem antiga. Em um dos cantos existe uma porta de entrada.
Ana, psicóloga, magra, cabelos presos por um elástico, usa uma camisa com mangas que cobre todo o braço, nariz empinado com certa superioridade, usa um pequeno óculos que vez ou outra precisa ajustar no rosto com a ponta do dedo médio. Calças retro tipo boca de sino e um sapato com solado de madeira que toda vez que anda faz um barulho esquisito no chão.

Paulo, ator, alto, com cabelo desgrenhado, brincos em ambas as orelhas, blusa amassada e com os botões abertos, barba grande, calças ao estilo próprio, sandálias de dedo, é muito agitado.

(Paulo, parado na porta observando o ambiente com um pequeno cigarro já ao fim em uma das mãos)

Ana(Sentando na cadeira atrás do divã) Bom dia Paulo... Entre, sente-se...
Paulo(Entrando e dando uma última tragada no cigarro) O dia não tem nada de bom... A arte é uma merda. A arte não... A arte ensinada é uma merda.
Ana(Calma e passiva) Ali, atrás dos livros... Tem um cinzeiro. Pode pôr seu cigarro lá.
 Paulo – Você fuma? Não sabia... Algo novo. O estranho é que nunca senti cheiro de cigarro em você.
Ana – Não fumo...
Paulo(Contando) E pra quê o cinzeiro?
Ana – Isso? É brinde que ganho da associação dos psicólogos do Brasil. Eles acham que todos nós somos fumantes e passivos a ter um câncer por excesso de cigarro.
Paulo – Ou por excesso de loucura.
Ana – A loucura é o que não preocupa. Você não quer sentar?
Paulo(Que até aquele instante estava em pé) Sim claro...
Ana – Está melhor?
Paulo – Estou!
Ana – Como foi à semana?
Paulo – No geral foi bem... A questão é que sou artista... Ator.
Ana – Sei disso... E por sinal aquele espetáculo que você participa é um sucesso...
Paulo(Cortando) Uma merda!
Ana – Eu gostei...
Paulo(Novamente cortando) tenho pena de você... Que não entende... Que não sente... Não vive... Só tem a opção de gostar e não gostar. É frustrante. O teatro é mais.
Ana – Quer falar sobre isso?
Paulo(Deitando no divã) Estudo artes ou era pra estudar. Já vivo com o preconceito de ser artista desde o berço. Lembro que no primeiro dia de aula fizeram uma pergunta para a turma: O que vocês querem aqui? Eu sabia o que queria. Tinha sentado do lado da porta, na última cadeira. As respostas começaram pelo lado das janelas... Na minha sala só o lado direito tinha janelas. Era infernal. O preconceito era grande mesmo. O curso já existia fazia uns quatro anos e ainda dependíamos de salas emprestadas para estudar. Todo dia era uma novela mexicana... Vamos para bloco tal... Agora vamos para outro bloco.
Ana – Isso parece deixar você irritado...
Paulo(Cortando) Era um chute no saco! Éramos quarenta alunos... Uma sala com janelas apenas de um dos lados, um ventilador que mais fazia barulho do que aliviava o calor. Como não ficar irritado, como aguentar isso?
Ana – E a pergunta? O que vocês querem aqui?
Paulo – Sim, claro. Foi meio que engraçado... Eu meio que ria por dentro a cada resposta. Uma garota respondeu que estava ali para poder ir para TV, novelas... Essas coisas. Todos deram um sorrisinho de canto de rosto... Irônico. Não nego que também ri... Mas fiz algo por aquela garota que ninguém faria.
Ana – E o que foi?
Paulo – Tirei-a da universidade...
Ana(Cortando) Por quê?
Paulo – Pense comigo doutora... Aquela criatura não queria aquilo... Ela queria ser atriz. O curso não daria isso pra ela. Só mostrei outras portas. A maioria dos atores de televisão fizeram outros cursos ou não fizeram curso nenhum. Apenas escola de teatro ou praticando por longo período de tempo. Se você quer ser ator certamente não precisa de universidade para tal feito. Agora se você quer ser professor de teatro você precisa do ser ator. Praticar o teatro é essencial para quem precisa ou quer seguir sendo professor de teatro. A universidade não oferece isso... Pelo contrário... Ela oferece tudo, menos teatro. Quando chegou a minha vez de responder... Alguns me olharam como se estivesse esperando uma resposta prolongada ou algo bonito. Apaixonado. A maioria me conhecia e sabia o que eu fazia. Olhei algumas caras abobalhadas por alguns segundos e disse: Estou aqui pelo diploma!

Ana – A garota saiu mesmo da universidade? E qual foi à reação dos colegas com sua resposta.
Paulo(Sentando no divã, pegando uma carteira de cigarros do bolso no peito, puxa um cigarro, guarda a carteira, procura um isqueiro pelos bolsos, tem dificuldade para encontrar, Ana tira um pequeno isqueiro de um de seus bolsos e entrega para Paulo) Posso fumar?
Ana(recolhendo o isqueiro que Paulo devolve) Fique a vontade... É costume de meus pacientes querer fumar durante o intervalo de suas falas.
(Silêncio)
(Paulo fica por alguns instantes com o olhar no horizonte, vazio, Ana, levanta da cadeira e vai até a estante de livros)

Paulo(Levantando e indo até a porta) A garota aguentou ainda um mês e depois foi embora pro Rio de Janeiro. Creio que esteja tentando entrar para TV. Já a cara dos meus colegas não tem preço. Ontem eu estava tomando umas cervejas com alguns amigos músicos... Ando sempre por várias áreas da arte. Gosto disso. Estávamos no auge da bebedeira quando um deles tocou no assunto. Dizia: O cara vai passar quatro anos estudando música... Vai aprender ler partitura, colocar as notas certinhas no papel. Mas, quando o aluno desse mesmo cara que vai ser professor disser que quer aprender a tocar violão ou qualquer outra coisa, esse cara vai dizer que não toca, mas que pode ajudar o garoto a ler partitura. Isso é ou não é uma merda?
Ana – Como assim?
Paulo(Sentando na cadeira atrás do divã) Eu não quero ser professor, mas também não quero que um cara ensine teatro sem saber teatro. Entende?
Ana(Sentando no divã) A arte não está sendo passada no curso?
Paulo – Arte não se aprende...  Ou você nasce com esse dom ou não nasce... O que se aprende é técnica... Isso se aprende. Você pode praticar muito e se conhecer... Conhecer seu corpo, atuar... Mas, arte não se ensina. O que podemos fazer é desenvolver o que já existe em você. Acredito que existe um artista dentro de cada um... Mas que precisa desenvolver. Nem todos vão para o palco, mas podem ir pra iluminação, para som, para a contra regra, figurino, porra... A questão é saber onde se encaixa. Mais uma coisa é certa... Na universidade todos tem que praticar teatro... Muito teatro... Se quiser ser professor de teatro... Por que caso contrario podem deixar um aluno doente ou com problemas sérios no corpo... Teatro é sério e não uma brincadeira de pulinhos... Porra! Entende.

Ana – Claro que entendo.
Paulo(Interpretando uma cena sem se levantar da cadeira) Essas sombras que me perseguem em quadros desfocados... Noites secas. Aqui na escuridão do meu quarto, penso naquilo que iríamos realizar e agora propõe a morte a todos do nosso clã. Maldito dia aquele que beijei tua boca e te dei guarita. Se alguém tem que morrer nessa casa... Morreremos nós de sangue impuro. De esqueleto putrefato de alma podre.

Ana – O que foi isso?
Paulo – É uma cena do meu próximo espetáculo... Tinha que ensaiar e decide tentar aqui. Precisa de uns ajustes cênicos.
Ana – Entendo... Mas ganho por hora.
Paulo – É mesmo?
Ana – Sim.
Paulo(Pegando o caderno de anotações de Ana que estava ao lado da cadeira) Ana, sempre quis ser psicóloga?
Ana(Deitando no divã) Não. Queria ser atriz... Fico com inveja toda vez que vou assistir a um espetáculo e você em cena. Sempre sofri uma pressão para seguir a profissão da família.
Paulo(Tirando os óculos do rosto de Ana e colocando em seu rosto) Profissão da família?
Ana – É... Sou de uma família de psicólogos. Meu avô era um psicólogo que conheceu o próprio Freud. Meus tios todos eram psicólogos, meu pai, minha mãe também.
Paulo – Essa é uma situação Freud.
Ana – Tinha dez anos quando assisti a uma peça infantil. Naquele instante decidi que queria ser atriz... Comecei a procurar escolas de teatro, conhecer grupos, atores, diretores.
Paulo – E por que não continuou?
Ana – No começo meus pais acharam que era coisa de criança deslumbrada... Que logo me voltaria para as coisas da família.
Paulo – Coisas da família?
Ana – As coisas da família é entender os outros e tentar encontrar soluções... A questão que ser artista não é encontrar soluções e sim problemas. Confesso que tenho uma queda por problemas! Aqueles que você ensaia, briga com o colega de cena para uma solução, faz e desfaz tudo só por que não se encaixou no contexto da história.
Paulo(Anotando alguma coisa no caderno) E o que sua família fez pra que você se tornasse psicóloga?
Ana – O que todas as famílias fazem quando querem que os filhos façam. Vivam os sonhos dos pais e enterre os seus. Pressão psicológica. Tentei várias vezes suportar a pressão, mas teve uma hora que não consegui e acabei cedendo.
Paulo – E aceitou assim as pressões da família?
Ana – No começo achei que era o melhor pra mim... Terminei os estudos e comecei a trabalhar. Logo já tinha uma lista intensa de pacientes. Ganho um dinheiro razoável e não tenho que reclamar da profissão, mas não sou feliz com isso.
Paulo – E hoje, depois de tudo... Já falou com sua família sobre sua vida?
Ana – Sim... Conversei com meus pais sobre tudo e sabe o que falaram?
Paulo – Se você não contar não vou saber nunca.
Ana – Que seria melhor eu ter seguido a carreira de atriz... Que eu seria mais feliz.
Paulo – E o que fez?
Ana – Fiquei um ano em terapia intensiva. Ainda vou ao meu psicólogo pra tentar entender.
Paulo – Qual a lição que você tira disso tudo?
Ana – Não sei...
Paulo – Que devemos viver nosso sonho e não o dos outros. Inclusive o dos pais. Se seguir o sonho de outros e não os seus, vai parar no psicólogo como agora.
Ana – Agora começo a entender doutor... Doutor?
Paulo – Sim!
Ana – Você não é psicólogo! A psicóloga aqui sou eu!
Paulo – Isso é verdade... A questão é que no meu próximo espetáculo vou fazer um psicólogo... Como nunca tinha interpretando nada parecido... Eu tinha que fazer um laboratório. E nada melhor do que usar nossos encontros para tal trabalho. Já sei que vou levar os lados bons e ruins da sua profissão e isso é algo bom não acha?
Ana – Claro que não... Você não tem preparo para tal prática e isso é uma fraude.
Paulo – Sou uma fraude, mas disse tudo sobre suas frustrações e anseios.
Ana – Eu não tinha a intenção... Eu...
Paulo – Entenda doutora, todos nós somos um pouco psicólogo, um pouco treinador de futebol, um pouco médico, um pouco professor.
Ana – E artista?
Paulo – Artista?
Ana – Sim... Artista!
Paulo – Só se conseguir enfrentar os pais, os amigos, a sociedade e a arte.
Ana – A arte?
Paulo – Sim... A arte.
Ana – Pensei que a arte fosse um bem... Um fim para respirarmos.
Paulo – A arte é o começo do sufoco. Se você consegue respirar arte então nada consegue abalar seus sonhos.
Ana – E conseguimos conquistar a arte?
Paulo – Isso que é engraçado... A arte nos conquista.
Ana – Então nossos sonhos podem ser abalados.
Paulo – Aquilo que se conquista fácil não tem valor!
Ana – Acho que estou conseguindo entender o que quer dizer...
Paulo(Cortando) Se não entendesse também não tinha importância... Entender às vezes não é o que importa.
Ana – Isso é confuso...
Paulo(Cortando) Doutora quanto você ganha por consulta?
Ana(Sentando no divã) Duzentos por hora...
Paulo(Cortando) A minha hora as vezes é setenta ou nada... Depende da ocasião.
Ana - Por falar nisso sua hora acabou...
Paulo(Cortando) Posso voltar na semana que vem?
Ana – Claro é só marcar um horário com a Rita.
Paulo – Quem é Rita?
Ana(Entregando um cartão) Minha secretária.
Paulo – Vou ligar então. Obrigado!
Ana – Tenha uma boa apresentação...
Paulo(Cortando) Não se fala assim.
Ana – E como se fala?
Paulo – Merda
Ana – Então... Merda pra você.
Paulo – Obrigado... (Coloca a mão no bolso e tira um ingresso) Toma... Vai assistir.
Ana – Claro que vou!
Paulo – Tchau doutora (Sai).
Ana – Tchau.
 (Ana vai até a mesa e coloca o ingresso na bolsa, abre uma gaveta e pega um maço de cigarros cheira e joga no lixo, abre outra gaveta e pega uma garrafa de vinho, coloca um pouco em um copo, guarda a garrafa, fecha as gavetas, vai até a estante de livros com a taça, toma um gole, escolhe um livro, folhei algumas páginas)
Ana(Colocando a taça de vinho em algum canto da estante) Ser ou não ser... Essa é a questão.
(Fecha o livro e pega a taça de vinho tomando de um só gole)
Ana(Olhando para a plateia com a taça vazia na mão) Filho da puta! Não pagou a consulta.
(A luz vai diminuindo de intensidade até o palco ficar em escuro total)

FIM

A Peça

A Peça
Yuri Montezuma

Pequeno teatro antigo ou moderno. Tanto faz. Quem decidi como será vai ser você. Uma mesa, duas cadeiras, um lustre, fotos antigas nas paredes, telefone no canto direito do palco.
Camila é uma senhora de certa idade, viúva. Mãe de Claudinho. Usa um avental. Típica dona de casa antiga. Pra ela o tempo não passou.
Claudio de Almeida da Silva Junior – O Claudinho, filho de Camila. Ele é ator. Despojado, atraente e jovem que já passa dos vinte e cinco, mas que ainda não chegou aos trinta.
Paula, atriz que já passa dos vinte, mas que ainda não chegou aos vinte e cinco. Vive seus personagens intensamente. Chegando a necessitar de psicanálise para voltar a ter uma vida normal.
As três amigas de Paula, que vão ao teatro pela primeira vez.
 O cenário é o mesmo para a casa de Claudinho. É utilizado também para as ações posteriores e pode fazer parte do espetáculo UVAS VERDEJANTES, que Claudinho e Paula fizeram para romântico.

As luzes vão se acendendo. O palco está vazio. Toca o telefone.

Camila – (entrando e atendendo ao telefone) Alo. Não Paula... Não ele não está.  Pra falar a verdade ele viajou e não deve voltar tão cedo. Pode deixar que eu avisarei. De nada. Pra você também. (Gritando) Claudio de Almeida da Silva Junior...
Claudinho – (Entrando) Claudinho mãe! E o que foi?
Camila – Essa é centésima vez que essa menina liga atrás de você! Ela tá grávida?
Claudinho – Não... Ela é uma louca do elenco que cisma em casar comigo! Só por que nós fizemos par romântico no espetáculo.
Camila – UVAS VERDEJANTES... Espetáculo de nome escroto... E por que você não fala que não quer? (Sai)
Claudinho – (Explicando para a mãe como se estivesse falando da sala para acozinha) É melhor eu contar como tudo começou... (Começa a contar a história, a luz vai mudando o ambiente para a encenação da cena final de UVAS VERDEJANTES, Paul entra pelo lado oposto que Camila e Claudinho tinham entrado).

UVAS VERDEJANTES (Uma pequena cena)

Paula – (Entrando ofegante, coração na boca) Consegui... Matei André, e finalmente conseguiremos ser felizes.
Claudinho – Agora me sinto livre de tudo. Das acusações, perseguições, de todo o mal...
Paula – Beije-me José. (Os dois se beijam fervorosamente)

(O ambiente do espetáculo, muda para as três amigas que estão sentadas na plateia misturadas com o publico).
Amiga I – Eles se beijaram...
Amiga II – E ela disse que guardaria seu beijo para o Antônio
Amiga III – O beijo no teatro não é de verdade... Deixem de besteira e assistam.

(Alguém grita da plateia)

- Bravo... Excelente. Maravilho.

(Os dois agradecem, aplaudem a plateia, recebem flores, elogios, silêncio no ambiente, agora tudo se voltou para um ambiente pós-apresentação).

Claudinho – Paula, temos que ensaiar melhor aquela cena do sexo... Você nunca consegue ir até o fim... Sempre temos que resolver com a luz.
Paula – Desculpa Claudinho... É que sou prometida... E só meu prometido deve enxergar aquilo que será dele.
Claudinho – Prometida? Pensei que isso era coisa do passado, dos antigos imperadores que queriam reunir e agregar reinos.
Paula – Pois, saiba que ainda existem famílias assim. Que guardam suas filhas para um noivo escolhido por eles e que nós só vemos no casamento.
Claudinho – Isso é um absurdo... Você tem que mudar isso
Paula – (Confiante) – Eu mudei... Falei com o meu prometido. Seu nome é Antônio.
 Claudinho – Menos mal!  Falou com ele.
Paula – Por telefone.
(Silêncio)
Claudinho – Por telefone?
Paula – Sim.
Claudinho – você tem quantos anos... Vai casar tão jovem?
Paula – Na minha família é assim.
Claudinho – Você tem que viver sua vida... Conhecer o mundo, novas pessoas, experiências... Sei lá... Viver.
Paula – Tem razão! Tenho que viver e conhecer novas pessoas, outros ambientes, me aventurar.
Claudinho – Isso! Decidir o que é melhor para você, para seu futuro, poder escolher com quem quer ficar.
Paula – Pode me dar um segundo... (sai de cena)
Claudinho – O que aconteceu?
Paula – Liguei pro Antônio, meu noivo.
Claudinho – Sei... Posso saber o que rolou?
Paula – Você tinha razão... Terminei tudo com o Antônio...
Claudinho – Que bom...
Paula – E vou me casar com você.
(O ambiente, muda para as amigas que estão na plateia)
Amiga I – Ela fez o quê?
Amiga II – Falou que terminou tudo com o Antônio...
Amiga III – Parem de especulações. Ela deve ter errado o texto.
Amiga I – Acho que errou foi à vergonha na cara.
Amiga II – Coitado do Antônio.
Amiga III – Coitada de mim que tenho que aguentar vocês.
Amiga II – Não exagera...
Amiga III – Estou tentando acompanhar a história...
Amiga I – (Cortando) E por que não acompanha?
Amiga III – Se vocês calarem a boca!
Amiga II – Não está aqui quem falou.

(A cena muda para a casa de Claudinho)

Camila – (Entrando) Então você foi o pivô da separação da menina Claudinho?!
Claudinho – Claro que não mãe... Só achei errado, uma menina tão jovem casar cedo.
Camila – E não conseguiu ficar de boca fechada...
Claudinho – É só que não acaba por aí. Lembra que eu sofri um acidente? Pois é...

(recomeça a história, agora a mãe de Claudinho faz a médica).

Amiga I – Acho que ela deve ter dado mesmo um pé no Antônio. O Que você acha?
Amiga II – Eu não acho... Tenho é certeza. Esse chifre foi cênico.
Amiga III – Parem de fazer mal para nossa amiga... Todas nós sabemos que ela é cega de amor pelo Antônio. Ou vocês duas prestam atenção no espetáculo ou vou embora.
Amiga I – É que não acostumamos assistir essas coisas...
Amiga II – (Cortando) Geralmente é escondido.
Amiga III – O que é escondido?
Amiga I – Esse cifre!
Amiga II – Digno de premiação.
Amiga III – E vocês duas digna de vergonha.

Agora Claudinho está deitado na que serve de maca. Está respirando a base de oxigênio. Camila veste um Jaleco e agora é uma médica.

Enfermeira – Olá seu Claudinho. A sua médica particular quer vê-lo.
Claudinho – Mas eu não tenho médica particular.
Enfermeira – Seus familiares devem ter contratado! Vou pedir para que ela entre e os deixarei a sós.
Paula – (Entra com um jaleco médico e de máscara) Oi Claudinho!
Claudinho – Paula... Você não é médica.
Paula – Também sou...
Claudinho – Como assim?
Paula – Interpretei uma no espetáculo SÁBADO AS SETE.
Claudinho – Meu deus!
Paula – Como você faz eu me apaixonar... Comprei todo o enxoval do nosso casamento, fiz e mandei os convites, recebi e tive que devolver todos os presentes. Essas coisas não se fazem com uma mulher.
Claudinho – Mas não fiz nada...
Paula – Não se faça de desentendido.
Claudinho – Você precisa de ajuda.
Paula – O que esses botões aqui fazem?
Claudinho – Me mantém respirando!
Paula – (Apertando os botões) Isso é pra você sentir tudo que senti... Quando você sumiu também fiquei sem ar.
Claudinho – Socorro... Socorro.
Paula – Eu te amo Claudinho...
Claudinho – E por que está tentando me matar?
Paula – Por amor!
Claudinho – Socorro...

(O ambiente volta para as amiga).

Amiga I – Sempre soube que ela era desequilibrada... Agora se vestir de médica. Francamente!
Amiga II – Isso é de família...
Amiga III – Francamente vocês duas! Não sabem se comportar em um teatro.
Amiga II – Me comportar eu sei, mas isso não é mais teatro...
Amiga I – É o que então?
Amiga II – Loucura.
(Ambiente na casa de Claudinho)

 Claudinho – Entende agora por que estou correndo dessa mulher?
Camila – Se não fosse o seu pai chegar...
Claudinho – (Cortando) Hoje eu era apenas história.
Camila – Filho... Essa sua peça ficou muito pouco tempo em cartaz. Com um publico pífio.
Claudinho – Direitos autorais.
Camila – Os direitos autorais também proibiram o publico de ir ao teatro?
Claudinho – As questões de qualidade cênica não irei discutir. Mas, você que concordar que sempre tinha alguém na plateia gritando elogios.
Camila – Foi um ator contratado pela produção para animar vocês.
Claudinho – Como assim?
Camila – Um amigo meu... Indiquei para produção.
Claudinho – E as críticas?
Camila – Filho! Fiz jornalismo e tenho contatos dentro dos maiores jornais. Foi só uma questão de alguns telefonemas.
Claudinho – Triste...
Camila – (Cortando) E essa moça ainda está atrás de você?
Claudinho – Na verdade ela sumiu do mapa por um bom tempo... Só que eu estava no escritório...
Amiga I – Direitos autorais... Sei.
Amiga II – Aquela peça foi feita só pra ganhar dinheiro...
Amiga III – E era péssima...
Amiga I – Finalmente você fala e não nos bate.
Amiga II – É... E por que saiu chorando daquela peça?... Eu lembro!
Amiga III – Chorando de ódio. Agora prestem atenção que é a parte do escritório.
Amiga I – Que escritório?
Amiga III – Ele falou de um escritório.
Amiga II – Deixou de fazer teatro?
Amiga III – Eu é que sei?
Amiga I – Perguntar não ofende.

O ambiente é de um típico escritório. Só tem papeis.

Claudinho – (Sentando) Essa merda de cálculo nunca bate...
Paula – Oi Claudinho!
Claudinho – (Gritando igual uma mulher ao se deparar com uma barata) ai, ai, ai, ai... O que você quer aqui?
Paula – Calma... Só estou aqui para te pedir desculpas por ter te perseguido.
Claudinho – (Desconfiado) Tudo bem... São águas passadas.
Paula – Deixou o teatro?
Claudinho – Não... Mas também faço produção.
Paula – Que bom... Sempre ligado na arte!
Claudinho – E você?
Paula – Estou parada, mas com uma proposta para um novo espetáculo. Foi muito difícil...
Claudinho – (Cortando) Difícil o quê?
Paula – E também foi muito difícil superar a internação...
Claudinho – Que internação?
Paula – Fui internada com depressão pós-parto.
Claudinho – Você nunca teve filho!
Paula – Tive sim! Com você em UVAS VERDEJANTES.
Claudinho – Meu deus! De novo não...
Paula – (Cortando) Hoje estou curada... E como o pessoal vai lá pra casa para comemorar os cinco anos da peça... Vim aqui para te convidar e provar que não tem nenhum ressentimento.
Claudinho – Se é isso... Tudo bem. Marcado!
Paula – As oito.
Claudinho – Combinado.
(As amigas)
Amiga I – Isso vai dar merda!
Amiga II – Sabe que acho que ela se curou.
Amiga III – Ela é louca de pedra... Sorte teve foi o Antônio de não casar com a Paula.
Amiga I – (Lembrando – se) Nunca teve Antônio nenhum...
Amiga III – (Surpreendida) Como assim?
Amiga I – Ontem recebi um livro com história dos espetáculos dos últimos dez anos aqui na cidade. E adivinha... Antônio era um dos personagens de umas das peças que Paula participou.
Amiga II – Louca de pedra.
Claudinho – Entendeu mamãe?
Camila – Sim...

(Mostrando que tudo era um ensaio teatral, as luzem acendem geral).

Claudinho – E aí, como foi o ensaio?
Amiga I – Claudio eu gostei...
Amiga II – Acho que vai dar certo.
Amiga III – Vai ser um sucesso.
Camila – Precisamos de mais ensaio.
Claudinho – Vamos ensaiar mais então...
Amiga I – O que me preocupa é se Paula descobre...
Claudinho – A questão é que ela está em porto velho e além do mais eu troquei o nome dos personagens.
Camila – Tem tudo para dar certo.
Amiga I – Vai marcar minha volta ao teatro.
Claudinho – Fico feliz com tudo gente... Vamos jantar?
Amiga III – Vamos... Estou com muita fome! Esse ensaio foi duro.
Amiga II – Alguém paga o meu que depois devolvo.
Claudinho – Deixa comigo.
Camila – Vamos naquele barzinho da esquina? Lá tem sempre a melhor cerveja e o melhor preço.
Amiga I – Tudo bem.
Vão saindo quando de repente
Paula – (Aparecendo no meio da plateia do teatro e grávida) Oi Claudinho.
A luz vai diminuindo até escuridão total.


FIM