quarta-feira, 27 de abril de 2016

Velho Cicero II


O Jovem Francisco saiu correndo do pequeno aeroporto, queria contar tudo para o pai. Que estava na estrada de seringa. Corria rápido. Deixando suas lágrimas quase virarem lama junto à poeira do seu corpo.
Não parou em casa... Entrou na mata e gritava pelo pai, na esperança de ainda fazer o avião retornar. Sem temer onças ou outros animais, gritava. De supetão Cícero segura o menino com as duas mãos, lhe chamando atenção. Quando viu o garoto cheio de poeira, com lágrimas nos olhos, acalmou, deixou Francisco respirar e quando estava mais calmo disse: A SANTA FOI EMBORA! O pai desacreditou da "lorota" e quase lhe deu umas palmadas, quando chegasse em casa Santa iria ter o dela. O menino insistiu levando pai até o aeroporto da cidade. Lá foi confirmada a história de Francisco.
Cícero empalideceu! As mãos ainda sujas do leite da seringa, deixando o olhar cair em direção ao chão. Virou de costas, andou alguns metros, chamou Francisco, aquele dia de trabalho estava perdido, foi pra casa calado. Em sua cabeça só passava as palavras de seu pai. Da maldição dita. Palavras que pesavam nos ombros do cansado Cícero.
Quando mais novo trabalhava com o pais no corte da seringa e em poucas oportunidades visitavam a cidade para comprar mantimentos. Foi quando Cicero descobriu o gosto pela cachaça. Certa vez o jovem saiu de casa para visitar a cidade e prometera ao pai uma camisa nova. Chegando na cidade Cicero comprou os mantimentos, decidiu parar em um boteco. Era assim chamado os locais que vendiam bebidas. Ainda faltava a camisa, mas Cícero decidiu fazer uma pequena parada para molhar a garganta. A hora passou, passou, ele esquecera o presente do pai. Chegando de volta em casa bêbado o pai pergunta logo pela camisa... Ao que Cícero diz que esquecera, mas logo cedo voltaria na cidade e compraria a camisa. O velho olhou bem nos olhos de Cícero e cuspiu palavras de fúria, ódio e rancor: TU É UM DESGRAÇADO! NUNCA VAI TER NADA NA VIDA. TEUS FILHOS VÃO TE ABANDONAR UM A UM. VAI MORRER SOZINHO. ABANDONADO! AGORA PEGA TUAS COISAS E VAI EMBORA DA MINHA CASA.
Cícero em um canto escondido chorou como uma criança. Palavras machucam e machucou profundamente Cícero. Lutaria toda vida para que a maldição do pai não se concretizasse. Segurou a mão de Francisco como nunca tinha segurado antes. O garoto poderia jurar que vira uma lágrima do olho do pai, mas preferiu acreditar ainda ser seus olhos molhados. Chegaram em casa e todos vieram para porta saber o acorrido, pois nunca viram o pai chegar tão cedo em casa. Francisco entrou na pequena casa e os irmãos foram atrás para saber do pequeno as novidades. Cícero gritou: PRETA! Era assim que chamava a mulher Rosalina. Ela sentou do lado dele. Observou. Esperou a conversa... Ele engoliu em seco, olhou para o céu. Que estava limpo, sem nenhuma nuvem. Deu a notícia para a mulher: SANTA FOI EMBORA. A mulher questionou ele sobre o que iria fazer. Cícero olhou tudo em volta. Casa, terreno, terras, olhou as crianças e disse: COMEÇA A ARRUMAR NOSSAS COISAS. NESSES DIAS VAMOS EMBORA PARA RIO BRANCO.
Decidiu deixar todo o oficio da família. Passada de pai para filho. Estava na hora de ir atrás de Santa. A família não iria se desfazer como dissera seu pai. Ele não iria ser abandonado pelos filhos. A maldição do pai não vai se concretizar. E como diz Cícero: NÃO SE CHORA O LEITE DERRAMADO.
E todos eles foram rumo ao desconhecido. A capital do estado. Rio Branco.

 

CONTINUA...

segunda-feira, 25 de abril de 2016

O Velho Cicero


Se parasse aqui para recordar meu tempo de criança, diria que esqueci, mas na verdade prefiro guardar. Lá no fundo, bem no fundo. Então me pego hoje na madrugada lendo e de repente paro, não por que a leitura estava ruim, não que estivesse cansado, ser cansado já é uma condição para continuar vivendo, meu relógio não para, parece correr.
Foi a lembrança... A cansativa lembrança me parou. Fui voltando no tempo, escorregando por entre a cortina do passado. Não busquei o primeiro beijo, a primeira transa, nem a vez que estava nu no banheiro e me pegaram, mas sim cai na lembrança mais estranha que se pode ter. E logo hoje. numa segunda - feira quente de um dia qualquer.
Estava lá ele e eu... Nós dois sentados na frente da casa que era metade de madeira e metade em alvenaria. Fruto do suor do velho Cicero. Quando criança lembro que morávamos no bairro Cidade Nova. Toda família em uma casa que tinha quarto, sala e cozinha. O banheiro ficava no fundo do quintal. Na hora de dormir era aquela confusão para quem iria pegar o melhor lugar para dormir... Na casa do Velho Cicero era assim, mas ele sempre foi homem honesto, trabalhava e mantinha quase todos com seu suor caro, valente.
Foi seringueiro, cortou seringa, saia de casa antes do sol aparecer e fazia o caminho da estrada de ida e volta. Costume de acordar cedo levou pra vida. O que fez o velho sair do interior e se arriscar na cidade foi uma de suas filhas, ela tinha por apelido Santa, santinha para os amigos. Santa nunca teve boneca e brincar era um risco. O velho Cicero não gostava de encontrar suas crias fora de casa.
Certo dia uma amiguinha de Santa ganhou uma boneca de pano e lhe chamou para brincar. A menina distraída com a boneca que nunca vira e que provavelmente nunca teria igual, se esqueceu da hora de voltar pra casa. Quando o velho chegou e não encontrou a Santa, endoideceu e saiu no rastro da pequena. Santa apanhou, apanhou, apanhou, apanhou tanto que sua mãe Rosalina teve que lavar os machucados da menina com água de sal.
Santa gritava tão alto que seria melhor ter apanhado mais umas duas horas... A dor seria menor. As lágrimas deram lugar a raiva e ela jurou. UM DIA VOU EMBORA PRA BEM LONGE. E começou a colocar seu plano em prática. O pecado do velho Cicero era que tinha uma amante quase inseparável. A cachaça. Se naquele dia não estivesse tão bêbado talvez. Só talvez, a pequena Santa não tivesse ficado tão marcada.
Pois a Santa cresceu e um dia uma moça da cidade de Rio Branco chegou nas terras de Feijó. Lá conheceu a também moça Santa. Lhe fez uma proposta: VAMOS PARA RIO BRANCO. LÁ VOCÊ ESTUDA. LÁ VAI SER MELHOR PARA VOCÊ. Santa não pensou muito e aceitou o convite. Era hora de honrar aquilo que prometera. O irmão mais novo Francisco observou tudo. Não acreditou que Santa tivesse tamanha coragem para ir embora de casa. DUVIDO! NÃO TEM CORAGEM. Então ela disse à ele que aguardasse que no dia seguinte iria embora para não voltar mais.
De madrugada o velho Cicero saiu para cortar seringa. Santa pegou seu único vestido de chita e colocou em uma pequena mala de papelão. Francisco observou tudo calado. Incrédulo. Santa correu para o aeroporto, com pista de terra, ele foi atrás. Ainda incrédulo. Ela chegou e encontrou a nova amiga, beijou Francisco e disse: ADEUS MEU IRMÃO.
Foi em direção ao avião bimotor estacionado na pista... Ele de longe olhava ainda na inocência de ser apenas mais uma brincadeira da Santa. A incredulidade foi enchendo seus olhos de lágrimas. No fundo queria acreditar não ser verdade. Ela da janela manda um tchau. O piloto liga o motor na aeronave, coloca em posição de decolagem. O avião vai ganhando velocidade. Ele corre atrás desesperado. Grita. Chora compulsivamente. Santa não escuta, mas também chora. Francisco perde o equilíbrio e cai levantando poeira com seu corpo. E ao longe vai vendo o pequeno avião ganhando altitude.


CONTINUA...