sábado, 15 de outubro de 2016

Por Dentro



Tudo começou como deve começar. Uma manhã cinza, com muitas nuvens, ameaçava chover, mas não caiu sequer uma gota. O tempo ficou abafado como deveria ficar. Ele levantou lentamente e sentou na cama. Observou lentamente o quarto, cada espaço, cada detalhe. Sentiu o cheiro frio que vinha do ar-condicionado. 

Seus pés doíam como sempre no último ano. A dor já fazia parte dele, era como se fosse uma unha, um dedo, cabelos. Estava ali, sempre. Levantou e foi colocar ração para o peixe. Notou que o aquário estava sujo, mas não fez nada. Sentia a dor nos pés mais aguda. Quase chegava a franzir sua testa, mas caminhava como se nada estivesse acontecido. Abriu a geladeira e bebeu água como se estivesse seco. Uma garrafa inteira. 

Foi para o banheiro e sentou no vaso. Lá pensou na briga que teve com a companheira na noite anterior. Levantou do vaso. Voltou e olhou ela deitada. Lentamente foi de volta para o banheiro. Tudo pareceu se clarear. Ela pediu o divorcio. Ele estava cansado de muita coisa também, de muita coisa e pensou em também se separar, mas qual casal não pensou? Definitivamente não queria separar!

Sempre falou com desenvoltura sobre vários assuntos. Futebol, teatro, política. Era social. Apesar do rosto sério que na maioria das vezes apresentava. Muitas vezes se divertiu sem abrir um sorriso durante a noite inteira. Várias pessoas o perguntavam se estava bem quando sério. Para tudo se tinha assunto. Falava!

E o sentimento? O sentimento é vários! Falar que era o problema. Não consegue externalizar o que sente de forma fluente. Os sentimentos eram seu ponto franco. Sua Kriptonita. Isso levou seu relacionamento para o buraco. Muitas coisas queria falar para ela, mas dentro tudo era furação. Apesar da casca ser completamente inalterada. Quantas vezes o atacaram e na sua frieza externa demostrava não sentir nada. No entanto, quando só sentia. Sentia. Muito.

Saiu do quarto e foi em direção a casa, tomou seu café, desceu lentamente e por vezes quase o engasgava. O gato que dormia no sofá acordou, espreguiçou, levantou a vista e olhou para ele como se dissesse que estava acabado da noite anterior na rua. A senhora perguntou se estava bem. Sim. Sempre sim.

Nunca lhe foi dado a oportunidade de sentir-se mal. Nunca. Toda vez era julgado como se fosse uma máquina. Não podia sentir. Toda vez que sentia era uma catástrofe. Essa máquina não poderia parar. Principalmente para quem tem pré disposição a depressão. Para ela que estava no grupo feminista da cidade, acompanhando ações em grupos de face book, tudo o que ele pudesse sentir era coisa de homem melindrado. Coisa do macho opressor. Ele foi calando em casa. Calando com muita coisa para dizer. Sem dizer. Como sempre a casca não sentia. Isso ele conseguia esconder. Ao menos tentava. Por dentro gritava feito um lunático. Ouviu da companheira que era um potencial estuprador. Calou de vez!

Aquelas palavras doeram nele, foi um efeito devastador, respirava mal. Comprou cigarro na esquina. Fumou o primeiro e logo o segundo. Tinha coisas para resolver. Não podia parar. Máquina com defeito se troca. Essa é a maldita lógica. Rodou a cidade o dia inteiro. Pela a primeira vez não sentiu vontade de voltar para casa. Queria gritar. Não gritou!

Voltou! Atravessou o portão, deu boa noite para as pessoas da casa. Foi para o quarto. Estava vazio. Pegou o aquário, colocou o peixe em um vaso, limpou o aquário. Fumou mais dois cigarros. Sentou na cama. Respirou fundo. Quis chorar. Ela chegou!

Foi para o banheiro. Tomou banho. Voltou com o rosto sereno. Sorriu!
Deitou e dormiu.