Ser,
Pra quê, Por quê?
Yuri
Montezuma
Um consultório psiquiátrico, um divã,
na cabeceira do divã uma cadeira, em um canto da sala existe uma estante com
vários livros, na parede oposta existem pequenos quadros retratando a natureza,
o ambiente é meio cinza, iluminado praticamente com um pequeno abajur. O piso é
de madeira rústica e bem antiga. Em um dos cantos existe uma porta de entrada.
Ana, psicóloga, magra, cabelos presos
por um elástico, usa uma camisa com mangas que cobre todo o braço, nariz
empinado com certa superioridade, usa um pequeno óculos que vez ou outra
precisa ajustar no rosto com a ponta do dedo médio. Calças retro tipo boca de
sino e um sapato com solado de madeira que toda vez que anda faz um barulho
esquisito no chão.
Paulo, ator, alto, com cabelo
desgrenhado, brincos em ambas as orelhas, blusa amassada e com os botões
abertos, barba grande, calças ao estilo próprio, sandálias de dedo, é muito
agitado.
(Paulo, parado na porta observando o
ambiente com um pequeno cigarro já ao fim em uma das mãos)
Ana – (Sentando na cadeira atrás do divã) Bom
dia Paulo... Entre, sente-se...
Paulo –
(Entrando e dando uma última tragada no
cigarro) O dia não tem nada de bom... A arte é uma merda. A arte não... A
arte ensinada é uma merda.
Ana – (Calma e passiva) Ali, atrás dos
livros... Tem um cinzeiro. Pode pôr seu cigarro lá.
Paulo –
Você fuma? Não sabia... Algo novo. O estranho é que nunca senti cheiro de
cigarro em você.
Ana – Não fumo...
Paulo –
(Contando) E pra quê o cinzeiro?
Ana – Isso? É brinde
que ganho da associação dos psicólogos do Brasil. Eles acham que todos nós
somos fumantes e passivos a ter um câncer por excesso de cigarro.
Paulo –
Ou por excesso de loucura.
Ana – A loucura é o
que não preocupa. Você não quer sentar?
Paulo –
(Que até aquele instante estava em pé)
Sim claro...
Ana – Está melhor?
Paulo –
Estou!
Ana – Como foi à
semana?
Paulo –
No geral foi bem... A questão é que sou artista... Ator.
Ana – Sei disso... E
por sinal aquele espetáculo que você participa é um sucesso...
Paulo –
(Cortando) Uma merda!
Ana – Eu gostei...
Paulo –
(Novamente cortando) tenho pena de
você... Que não entende... Que não sente... Não vive... Só tem a opção de
gostar e não gostar. É frustrante. O teatro é mais.
Ana – Quer falar sobre
isso?
Paulo –
(Deitando no divã) Estudo artes ou
era pra estudar. Já vivo com o preconceito de ser artista desde o berço. Lembro
que no primeiro dia de aula fizeram uma pergunta para a turma: O que vocês
querem aqui? Eu sabia o que queria. Tinha sentado do lado da porta, na última
cadeira. As respostas começaram pelo lado das janelas... Na minha sala só o
lado direito tinha janelas. Era infernal. O preconceito era grande mesmo. O
curso já existia fazia uns quatro anos e ainda dependíamos de salas emprestadas
para estudar. Todo dia era uma novela mexicana... Vamos para bloco tal... Agora
vamos para outro bloco.
Ana – Isso parece
deixar você irritado...
Paulo –
(Cortando) Era um chute no saco!
Éramos quarenta alunos... Uma sala com janelas apenas de um dos lados, um
ventilador que mais fazia barulho do que aliviava o calor. Como não ficar
irritado, como aguentar isso?
Ana – E a pergunta? O
que vocês querem aqui?
Paulo –
Sim, claro. Foi meio que engraçado... Eu meio que ria por dentro a cada
resposta. Uma garota respondeu que estava ali para poder ir para TV, novelas...
Essas coisas. Todos deram um sorrisinho de canto de rosto... Irônico. Não nego
que também ri... Mas fiz algo por aquela garota que ninguém faria.
Ana – E o que foi?
Paulo –
Tirei-a da universidade...
Ana – (Cortando) Por quê?
Paulo –
Pense comigo doutora... Aquela criatura não queria aquilo... Ela queria ser
atriz. O curso não daria isso pra ela. Só mostrei outras portas. A maioria dos
atores de televisão fizeram outros cursos ou não fizeram curso nenhum. Apenas
escola de teatro ou praticando por longo período de tempo. Se você quer ser
ator certamente não precisa de universidade para tal feito. Agora se você quer
ser professor de teatro você precisa do ser ator. Praticar o teatro é essencial
para quem precisa ou quer seguir sendo professor de teatro. A universidade não
oferece isso... Pelo contrário... Ela oferece tudo, menos teatro. Quando chegou
a minha vez de responder... Alguns me olharam como se estivesse esperando uma
resposta prolongada ou algo bonito. Apaixonado. A maioria me conhecia e sabia o
que eu fazia. Olhei algumas caras abobalhadas por alguns segundos e disse:
Estou aqui pelo diploma!
Ana – A garota saiu
mesmo da universidade? E qual foi à reação dos colegas com sua resposta.
Paulo –
(Sentando no divã, pegando uma carteira
de cigarros do bolso no peito, puxa um cigarro, guarda a carteira, procura um
isqueiro pelos bolsos, tem dificuldade para encontrar, Ana tira um pequeno
isqueiro de um de seus bolsos e entrega para Paulo) Posso fumar?
Ana – (recolhendo o isqueiro que Paulo devolve)
Fique a vontade... É costume de meus pacientes querer fumar durante o intervalo
de suas falas.
(Silêncio)
(Paulo fica por alguns instantes com o
olhar no horizonte, vazio, Ana, levanta da cadeira e vai até a estante de
livros)
Paulo –
(Levantando e indo até a porta) A
garota aguentou ainda um mês e depois foi embora pro Rio de Janeiro. Creio que
esteja tentando entrar para TV. Já a cara dos meus colegas não tem preço. Ontem
eu estava tomando umas cervejas com alguns amigos músicos... Ando sempre por
várias áreas da arte. Gosto disso. Estávamos no auge da bebedeira quando um
deles tocou no assunto. Dizia: O cara vai passar quatro anos estudando
música... Vai aprender ler partitura, colocar as notas certinhas no papel. Mas,
quando o aluno desse mesmo cara que vai ser professor disser que quer aprender
a tocar violão ou qualquer outra coisa, esse cara vai dizer que não toca, mas
que pode ajudar o garoto a ler partitura. Isso é ou não é uma merda?
Ana – Como assim?
Paulo –
(Sentando na cadeira atrás do divã)
Eu não quero ser professor, mas também não quero que um cara ensine teatro sem
saber teatro. Entende?
Ana – (Sentando no divã) A arte não está sendo
passada no curso?
Paulo –
Arte não se aprende... Ou você nasce com
esse dom ou não nasce... O que se aprende é técnica... Isso se aprende. Você
pode praticar muito e se conhecer... Conhecer seu corpo, atuar... Mas, arte não
se ensina. O que podemos fazer é desenvolver o que já existe em você. Acredito
que existe um artista dentro de cada um... Mas que precisa desenvolver. Nem
todos vão para o palco, mas podem ir pra iluminação, para som, para a contra
regra, figurino, porra... A questão é saber onde se encaixa. Mais uma coisa é
certa... Na universidade todos tem que praticar teatro... Muito teatro... Se
quiser ser professor de teatro... Por que caso contrario podem deixar um aluno
doente ou com problemas sérios no corpo... Teatro é sério e não uma brincadeira
de pulinhos... Porra! Entende.
Ana – Claro que
entendo.
Paulo –
(Interpretando uma cena sem se levantar
da cadeira) Essas sombras que me perseguem em quadros desfocados... Noites
secas. Aqui na escuridão do meu quarto, penso naquilo que iríamos realizar e
agora propõe a morte a todos do nosso clã. Maldito dia aquele que beijei tua
boca e te dei guarita. Se alguém tem que morrer nessa casa... Morreremos nós de
sangue impuro. De esqueleto putrefato de alma podre.
Ana – O que foi isso?
Paulo –
É uma cena do meu próximo espetáculo... Tinha que ensaiar e decide tentar aqui.
Precisa de uns ajustes cênicos.
Ana – Entendo... Mas
ganho por hora.
Paulo –
É mesmo?
Ana – Sim.
Paulo –
(Pegando o caderno de anotações de Ana que
estava ao lado da cadeira) Ana, sempre quis ser psicóloga?
Ana – (Deitando no divã) Não. Queria ser
atriz... Fico com inveja toda vez que vou assistir a um espetáculo e você em
cena. Sempre sofri uma pressão para seguir a profissão da família.
Paulo –
(Tirando os óculos do rosto de Ana e
colocando em seu rosto) Profissão da família?
Ana – É... Sou de uma
família de psicólogos. Meu avô era um psicólogo que conheceu o próprio Freud.
Meus tios todos eram psicólogos, meu pai, minha mãe também.
Paulo –
Essa é uma situação Freud.
Ana – Tinha dez anos
quando assisti a uma peça infantil. Naquele instante decidi que queria ser
atriz... Comecei a procurar escolas de teatro, conhecer grupos, atores,
diretores.
Paulo –
E por que não continuou?
Ana – No começo meus pais
acharam que era coisa de criança deslumbrada... Que logo me voltaria para as
coisas da família.
Paulo –
Coisas da família?
Ana – As coisas da
família é entender os outros e tentar encontrar soluções... A questão que ser
artista não é encontrar soluções e sim problemas. Confesso que tenho uma queda
por problemas! Aqueles que você ensaia, briga com o colega de cena para uma
solução, faz e desfaz tudo só por que não se encaixou no contexto da história.
Paulo –
(Anotando alguma coisa no caderno) E
o que sua família fez pra que você se tornasse psicóloga?
Ana – O que todas as
famílias fazem quando querem que os filhos façam. Vivam os sonhos dos pais e
enterre os seus. Pressão psicológica. Tentei várias vezes suportar a pressão,
mas teve uma hora que não consegui e acabei cedendo.
Paulo –
E aceitou assim as pressões da família?
Ana – No começo achei
que era o melhor pra mim... Terminei os estudos e comecei a trabalhar. Logo já
tinha uma lista intensa de pacientes. Ganho um dinheiro razoável e não tenho
que reclamar da profissão, mas não sou feliz com isso.
Paulo –
E hoje, depois de tudo... Já falou com sua família sobre sua vida?
Ana – Sim... Conversei
com meus pais sobre tudo e sabe o que falaram?
Paulo –
Se você não contar não vou saber nunca.
Ana – Que seria melhor
eu ter seguido a carreira de atriz... Que eu seria mais feliz.
Paulo –
E o que fez?
Ana – Fiquei um ano em
terapia intensiva. Ainda vou ao meu psicólogo pra tentar entender.
Paulo –
Qual a lição que você tira disso tudo?
Ana – Não sei...
Paulo –
Que devemos viver nosso sonho e não o dos outros. Inclusive o dos pais. Se
seguir o sonho de outros e não os seus, vai parar no psicólogo como agora.
Ana – Agora começo a
entender doutor... Doutor?
Paulo –
Sim!
Ana – Você não é
psicólogo! A psicóloga aqui sou eu!
Paulo –
Isso é verdade... A questão é que no meu próximo espetáculo vou fazer um
psicólogo... Como nunca tinha interpretando nada parecido... Eu tinha que fazer
um laboratório. E nada melhor do que usar nossos encontros para tal trabalho.
Já sei que vou levar os lados bons e ruins da sua profissão e isso é algo bom
não acha?
Ana – Claro que não...
Você não tem preparo para tal prática e isso é uma fraude.
Paulo –
Sou uma fraude, mas disse tudo sobre suas frustrações e anseios.
Ana – Eu não tinha a
intenção... Eu...
Paulo –
Entenda doutora, todos nós somos um pouco psicólogo, um pouco treinador de
futebol, um pouco médico, um pouco professor.
Ana – E artista?
Paulo –
Artista?
Ana – Sim... Artista!
Paulo –
Só se conseguir enfrentar os pais, os amigos, a sociedade e a arte.
Ana – A arte?
Paulo –
Sim... A arte.
Ana – Pensei que a arte
fosse um bem... Um fim para respirarmos.
Paulo –
A arte é o começo do sufoco. Se você consegue respirar arte então nada consegue
abalar seus sonhos.
Ana – E conseguimos
conquistar a arte?
Paulo –
Isso que é engraçado... A arte nos conquista.
Ana – Então nossos
sonhos podem ser abalados.
Paulo –
Aquilo que se conquista fácil não tem valor!
Ana – Acho que estou
conseguindo entender o que quer dizer...
Paulo –
(Cortando) Se não entendesse também
não tinha importância... Entender às vezes não é o que importa.
Ana – Isso é
confuso...
Paulo –
(Cortando) Doutora quanto você ganha
por consulta?
Ana – (Sentando no divã) Duzentos por hora...
Paulo –
(Cortando) A minha hora as vezes é
setenta ou nada... Depende da ocasião.
Ana - Por falar nisso
sua hora acabou...
Paulo –
(Cortando) Posso voltar na semana que
vem?
Ana – Claro é só
marcar um horário com a Rita.
Paulo –
Quem é Rita?
Ana – (Entregando um cartão) Minha secretária.
Paulo –
Vou ligar então. Obrigado!
Ana – Tenha uma boa
apresentação...
Paulo –
(Cortando) Não se fala assim.
Ana – E como se fala?
Paulo –
Merda
Ana – Então... Merda
pra você.
Paulo –
Obrigado... (Coloca a mão no bolso e tira
um ingresso) Toma... Vai assistir.
Ana – Claro que vou!
Paulo –
Tchau doutora (Sai).
Ana – Tchau.
(Ana vai até a mesa e coloca o ingresso na
bolsa, abre uma gaveta e pega um maço de cigarros cheira e joga no lixo, abre
outra gaveta e pega uma garrafa de vinho, coloca um pouco em um copo, guarda a
garrafa, fecha as gavetas, vai até a estante de livros com a taça, toma um
gole, escolhe um livro, folhei algumas páginas)
Ana – (Colocando a taça de vinho em algum canto da
estante) Ser ou não ser... Essa é a questão.
(Fecha o livro e pega a taça de vinho
tomando de um só gole)
Ana – (Olhando para a plateia com a taça vazia na
mão) Filho da puta! Não pagou a consulta.
FIM
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